Os versos, dos primeiros
escritos pelo poeta, parecem se ajustar perfeitamente ao dia de hoje. Morreu o
poeta Ferreira Gullar, aos 86 anos. Ele inicia agora uma viagem clara para a
encantação.
Por Joan Edesson de Oliveira.
Escrevo com a sensação de que havia dois em um só. Havia um poeta, dos
maiores do século vinte, e havia um homem cada vez mais amargurado que escrevia
para jornais no início do século vinte e um.
Havia
esse Gullar bilioso, autor de um texto rancoroso, de uma coluna da qual
jorrava, em profusão, um ódio aparentado com a inveja. Esse Gullar parece ser
aquele eleito para a Academia Brasileira de Letras, perfeitamente à vontade no
seu embolorado fardão. No dizer da acadêmica Nélida Piñon, Gullar “estava feliz
com o convívio acadêmico”, em conviver com aqueles, ainda segundo ela, que são
“a elite intelectual do Brasil”. A julgar pelos últimos escritos de Gullar,
pelo conservadorismo e pelo ranço elitista que escorriam das suas colunas,
talvez fosse verdade mesmo. Talvez ele estivesse mesmo bastante satisfeito no
convívio com intelectuais do porte de Fernando Henrique Cardoso, José Sarney e
Merval Pereira, fina flor do pensamento nacional.
Mas havia
outro Gullar, o poeta de verso poderoso, de lirismo devastador, que manejava a
palavra feito dinamite como em “O poema sujo” ou “Dentro da noite veloz”.
Esse
outro Gullar é que nos faz e nos fará mais falta ainda.
É o poeta
do início ainda, a inventar caminhos: “Caminhos não há/ Mas os pés na grama/ os
inventarão”. É o poeta concreto, a experimentar uma nova estética para o poema,
a romper com o verso, ousado, sem medo. É o poeta a pagar seu tributo de homem
do norte na sua experimentação do cordel, na “Peleja de Zé Molesta com Tio
Sam”, em “João Boa-Morte”, dentre outros.
O que nos
faz falta, a partir de agora, é o poeta dono de um lirismo que flutuava entre o
humor e o erotismo, entre a sensualidade e o épico. Em “Cantada”, o poeta
afirma que a amada “é tão bonita quanto o Rio de Janeiro/ em maio/ e quase tão
bonita/ quanto a Revolução Cubana”. Em uma única estrofe o poeta canta seu amor
pela mulher, pela cidade e pela revolução. Não foram muitos os capazes de tal
proeza.
Quantos
amantes, justificando-se que a poesia é de quem precisa dela e não de quem
escreve, não se apropriaram de “Um sorriso”, tentando penetrar “a noite de tua
flor que exala/ urina/ e mel”, buscando em fogo “colher com a repentina/ mão do
delírio/ uma outra flor: a do sorriso/ que no alto o teu rosto ilumina”?
O Gullar
que nos faz falta é o poeta que cantou Guevara em “Dentro da noite veloz”, num
dos mais comoventes e belos poemas em homenagem ao revolucionário de toda a
América. “A noite é mais veloz nos trópicos”, declarou o poeta, afirmando que
“a vida muda o morto em multidão”. Foi um profético Gullar quem escreveu isso,
anunciando a multidão de jovens em que se transformaria Ernesto Guevara.
A poesia
que Gullar nos deixa é “Subversiva”. “A poesia/ quando chega/ não respeita
nada/ Nem pai nem mãe./ (...) relincha/ como puta / nova/ em frente ao Palácio
da Alvorada./ (...) beija/ nos olhos os que ganham mal/ embala no colo/ os que
têm sede de felicidade/ e de justiça/ E promete incendiar o país”.
O Gullar
que iniciou hoje a sua viagem para a encantação é esse, o poeta de figura
estranha, magro e quixotesco espantalho, a cantar a vida, o amor e a revolução.
O Gullar que marcha a partir de hoje para a encantação é o poeta de “Dois e
dois: quatro”, a ver que “um tempo de alegria/ por trás do terror me acena”, e
a cantar, a plenos pulmões, “que a vida vale a pena/ mesmo que o pão seja caro/
e a liberdade, pequena”.
Fonte: CPC - RN ( centropotiguardecultura.blogspot.com.br)
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